Esse artigo vai fazer o Andre Floyd derramar algumas lágrimas. Sempre faz! E no final ele vai espumar de raiva, porque eu deixei passar algum aspecto essencial da obra que é parte indissociável de nossas vidas.
A reação previsível (e justificada) vai se repetir com requintes de fúria religiosa em todos aqueles que foram tocados por “The Piper at the Gates of Dawn” (1967), obra seminal do Pink Floyd que transcende o rock e a própria música.
Também não há como abordá-lo sem ferir algumas, ou muitas suscetibilidades. A ironia é que provavelmente eu jamais voltarei a escrever um texto tão inspirado e completo, mas vou assumir o necessário risco porque esta seção do blog deve abordar muitos ”filhos” do TPGD, álbuns e bandas que nasceram ou beberam intensamente dessa fonte.
O que me consola é o fato de que esse sentimento em parte frustrante transmite com precisão a sensação que nos assola ao fim de uma audição de The Piper. O primeiro grande mérito deste álbum é o de haver se destacado no prolífico — e inigualável — ano de 1967, que não por acaso antecedeu uma fase de profundas transformações culturais e comportamentais (também sem precedentes no século XX):
a revolta estudantil; o assassinato de Martin Luther King e Bob Kennedy; a primavera de Praga; a revolução sexual e a luta pelos direitos dos homossexuais, dos negros e das mulheres. Somente para citar as peripécias musicais, 1967 foi o ano de lançamento de “Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band“, O mais influente álbum da maior banda de rock de todos os tempos.
“A Criança é o Pai do Homem” — Wordsworth
Falar de “The Piper at the Gates of Dawn” é falar sobre Roger Keith “Syd” Barrett, o primeiro líder do Pink Floyd, que acalentou a banda (e os fãs) ao ensaiar seus primeiros passos.
Em TPGD Barrett diz tudo através do discurso de uma criança. Ou não seria a infância o único instante real, digno de algum registro, quando então — parafraseando O Mundo de Sofia — nos encontramos na ponta dos pelos do coelho que o mágico acaba de sacar da cartola, acompanhando mesmerizados cada mínimo gesto, até o momento em que alcançamos a base e aquele primo sabichão nos convence de
que tudo não passou de um truque ordinário?
Bruno Bettelheim, o célebre especialista em psicologia infantil, defendia a importância da linguagem dos contos-de-fadas para a superação dos conflitos internos que toda criança enfrenta nesta fase, resultando na formação de uma personalidade saudável.
Tais idílios, porém, não fizeram muito bem a Syd, confinado para sempre em algum final feliz que a dura realidade jamais lhe poderia proporcionar.
De qualquer forma, o próprio Bettelheim não escapou de um destino trágico, após uma vida repleta de polêmicas.
“The doll’s house, darkness, old perfume” – Barrett
A facilidade com que Barrett identifica memórias de infância com imagens sensoriais remete a ”Em busca do Tempo Perdido“, obra-prima de Marcel Proust.
A obscura e antiga fragrância de uma enorme casa de bonecas vitoriana* traduz a atmosfera que permeia todo o álbum.
O título do álbum faz referência ao sétimo capitulo do livro “The Wind in the Willows” (“O Vento nos Salgueiros“), o episódio em que o deus Pã ajuda dois amigos em sua busca (encontrar o filhote da lontra, perdido no bosque), e então lhes subtrai a recordação traumática, “a fim de que as lembranças horriveis não permaneçam e cresçam, sombreando a alegria e o prazer”.
Grace Slick, vocalista do Jefferson Airplane, a propósito de “White Rabbit“, inspirada em “Alice no País das Maravilhas“, declarou: “Nossos pais liam histórias como “Peter Pan”, “Alice no País das Maravilhas” e “O Mágico de Oz”. Todas elas têm um lugar onde as crianças conseguem drogas e podem voar, ver a Cidade de Esmeralda, animais e pessoas extraordinárias… e nossos pais, de repente, nos dizem: ‘Por que você está
usando drogas?’ Bom, por que será?“.
*Certamente Roger Waters divisaria um grande e ameaçador útero materno onde Barrett viu perfume e mistério.
“And if the band you’re in starts playing different tunes” – Waters
O afastamento compulsório de Barrett foi desconcertante para o restante do grupo. No documentário de Peter Whitehead sobre os agitos da Swinging London (contracultura baseada em Londres na década de sessenta), “Tonite Let’s All Make Love in London“, é impossível dissociar a imagem de Barrett extraindo ruídos peculiares da guitarra da cena de outro conhecido documentário.
Em “Live at Pompeii“, a banda, já destituída de seu fundador, executa “A Saucerful of Secrets” na arena de um anfiteatro romano em ruínas. Ali, David Gilmour – embora de forma hesitante, como que a esperar aprovação — entrega-se a um estranho ritual: executando gestos desconcertantemente familiares, parece tentar liberar o gênio adormecido no corpo da guitarra.
É certo, porém, que, fio por fio, a influência musical do mestre titereiro somente seria superada de uma vez por todas pela banda em “The Dark Side of the Moon” (não sem o devido epitáfio: o talento e a loucura de Syd ainda serviriam como tema para futuras composições).
Pelo confrade Renato Azambuja. Postado originalmente no finado blog Free Four em 08.02.2012.

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