Quando uma música pode ser considerada “acabada”? Quando, se alguma vez, uma música escrita por Bob Dylan pode ser considerada terminada? E o que fazer com as faixas que tinham luz verde para serem lançadas mas foram descartadas – depois que o autor decidiu que, de alguma forma, não conseguiam captar a totalidade do que ele estava tentando expressar?
Estas estão entre as questões que pairam sobre as múltiplas versões de “You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go” e tudo o mais em “More Blood, More Tracks” – um enorme tesouro de outtakes que documenta, em ordem cronológica, cada enunciado das sessões novaiorquinas que levaram à obra de Dylan, Blood on the Tracks, de 1975.
“You Are Gonna Make Me Lonesome” é uma declaração sincera e direta de solidão antecipatória, e quando Dylan começa a trabalhar nela, durante o segundo de quatro dias de gravação, ele a visualiza com total apoio da banda. Ele e os veteranos de estúdio da banda Deliverance se adaptam a um descontraído country-rock de L.A., e ao longo de um breve ensaio e várias tentativas, eles desenvolvem um entendimento prático sobre o que a música precisa, quando avançar e quando deixar espaço para os floreios vocais de Dylan. Há pequenas variações no tempo e no arranjo, e diferente de algumas versões iniciais de outras novas músicas de Dylan – notavelmente a gravação de “Idiot Wind” em Nova York, que foi substituída por uma versão (com uma banda diferente) posterior de dezembro em Minneapolis – essas interpretações são sólidas, profissionais e respeitáveis.
Algo aparentemente ainda incomoda Dylan, no entanto. Ele revisita “You’re Gonna Make Me Lonesome” no dia seguinte, inicialmente apenas com sua guitarra, piano e baixo. Então, no final da sessão, ele grava duas versões usando apenas guitarra e baixo. A segundo delas, que tem uma inclinação um pouco mais solta e alguns vocais lancinantes, é o que conhecemos de cor. (Não se sabe se Dylan fez mais tentativas nessa canção em Minneapolis; os produtores do box só conseguiram localizar as master tapes para as cinco músicas da sessão que apareceram, sem créditos aos músicos, no original “Blood On the Tracks“. Eles foram identificados neste lançamento.)
A busca de Dylan pela singular “verdade” dessa música em tantas tomadas não tem a ver com perfeccionismo de estúdio. Ele está perseguindo um equilíbrio particular entre acompanhamento narrativo e de fundo; quando há muita informação musical voando por aí, o feitiço é quebrado. Seu santo graal não é simplesmente documentar o ciclo de um caso de amor: Dylan está procurando por um tom específico e o temperamento para realçar as cenas que ele descreveu – cenas ambientadas na confusão de um romance que tudo consome, quando tudo o que restou de um amor nobre são ecos de uma sala vazia e memórias não totalmente confiáveis. A caixa de seis discos (e um disco de amostra) mostra como praticamente tudo o que foi parar em “Blood On the Tracks” passou por uma transformação semelhante. De confissão típica a expressão austera e angustiante.
Dissecados por gerações de compositores por sua precisão métrica e concisão estrutural, essas canções tinham que ser reproduzidas de forma limpa, com pouca ornamentação, para que os ouvintes não pudessem se furtar à nuance – ou, inversamente, à força bruta – das ilusões, decepções e dissoluções que Dylan descreve.
Um protagonista confidencia só conhecer o amor descuidado; outro segue uma trilha fria em vão para se reconectar com a mulher que fez as coisas fazerem sentido. Várias canções compartilham o que acontece quando as palavras iradas de um ex-amante atingem a psique no nível celular, enrolando-se em torno das válvulas do coração até que mudem a perspectiva de um homem, seu senso de identidade. Uma música é amarga e adstringente; outras são melancólicas, ternas, nostálgicas. Ouvidas de frente para trás, essas peças formam uma investigação sobre a dinâmica volúvel do relacionamento que não tem paralelo na história da música popular.
Mais do que isso, tudo no acabado “Blood On the Tracks” – cinco músicas editadas em Nova York, cinco em Minneapolis – compartilham uma característica animadora singular: essa energia visceral quase assombrosa. Essas músicas vibram em um tom emocional que é difícil de alcançar, quanto mais sustentar; “More Blood, More Tracks” ressalta essa façanha. As múltiplas tomadas mostram Dylan emoldurando e interpretando as palavras para sombrear ou alterar seus significados. Ele materializa o saca-rolhas para o coração, depois encontra maneiras de continuar.
Ferido e às vezes explodindo de fúria, Dylan canta com tanta imersão que ele reflete a eterna especulação sobre as origens deste trabalho – “é ele autobiográfico?” – praticamente sem sentido, pelo menos secundária à realização da arte. Desenrolando suas narrativas ricas em detalhes de formas diferentes a cada vez, Dylan coloca o abstrato em foco, evocando o gosto de uma repentina rejeição, o frio do vento soprando através dos botões de um casaco. Cada imagem trabalha uma mágica particular que fugiu a tantos poetas e compositores: Ele está traduzindo o confuso e o misterioso em música com ressonância universal.
Traduzido pelo confrade Renato Azambuja, Via NPR MUSIC
Tracklist:
CD e Duplo LP:
- Tangled Up in Blue (9/19/74, Take 3, Remake 3)
- Simple Twist of Fate (9/16/74, Take 1)
- Shelter From The Storm (9/17/74, Take 2)
- You’re a Big Girl Now (9/16/74, Take 2)
- Buckets of Rain (9/18/74, Take 2, Remake)
- If You See Her, Say Hello (9/16/74, Take 1)
- Lily, Rosemary and the Jack of Hearts (9/16/74, Take 2)
- Meet Me in the Morning (9/19/74, Take 1, Remake)
- Idiot Wind (9/19/74, Take 4, Remake)
- You’re Gonna Make Me Lonesome When You Go (9/17/74, Take 1, Remake)
- Up to Me (9/19/74, Take 2, Remake)